quinta-feira, 1 de junho de 2006

Quinta da China

por Teresa Andresen

"A Assembleia Municipal do Porto (AM) é hoje confrontada com uma solicitação insólita: a proposta de desafectação do domínio público de duas parcelas de terreno que correspondem a duas vielas na encosta da Paiva Couceiro, dita da Quinta da China. A aprovação pela AM implica a sua alienação a favor de Calçadas do Douro, Sociedade Imobiliária, Ldª.A proposta informa que "a cedência requerida visa dar cumprimento aos requisitos urbanísticos a observar pelo projecto de loteamento apresentado para o local (...) que se concretizarão, no que a tais áreas se refere, no melhoramento de infra-estruturas aí existentes, para efeito da execução de deliberações do executivo". Informa ainda que se verifica que as vielas não cumprem actualmente a utilidade pública a que se achavam destinadas, pelo que se deu início ao procedimento da desafectação. A Direcção-Geral da Administração Local e demais entidades consultadas, para que se verificasse essa desafectação, salvaguardaram os requisitos relacionados com o funcionamento de infra-estruturas de energia e água e os acessos a moradores. Afirmo que a proposta é insólita para a AM. Efectivamente, é competência explícita da AM deliberar sobre a desafectação de bens do domínio público municipal. Porém, as desafectações têm um objectivo cuja justificação é explicitada. Neste caso, o objectivo é um projecto de loteamento que todos conhecemos por "Quinta da China" e sobre o qual a AM não é informada.Na qualidade de membro da AM, desloquei-me à câmara municipal para consultar o vasto processo, com o qual, aliás, contactei pela primeira vez, quando, há cerca de 20 anos, colaborava na qualidade de arquitecta paisagista da equipa do Plano de Urbanização, sob coordenação do Prof. Duarte Castel Branco, que um dia se deslocou ao local.A consulta do processo é complexa, sobretudo porque assume domínios de grande tecnicidade do ponto de vista urbanístico e jurídico. Mas uma coisa é certa: de compromisso em compromisso, por parte dos sucessivos executivos camarários, a proposta da desafectação das vielas só chega à AM depois de o loteamento ter sido aprovado. Porque é que só na ponta final o executivo leva a decisão à AM, o órgão deliberativo do município, ou seja, porque é que é a AM a legitimar um processo que continua a não estar claro? E, hoje, a AM não vai apreciar o loteamento - apenas lhe é pedido que autorize a desafectação de duas vielas.Não é ético, não é correcto, e creio que enganador para os cidadãos que democraticamente elegem os seus órgãos de representação.E, repare-se, o loteamento da Quinta da China é tudo menos um acto vulgar, quanto mais não seja porque o local em causa é de grande sensibilidade na nossa cidade. O processo foi avançando, sendo que o proprietário interiorizou as vielas de domínio público na área total não sendo sua propriedade - só a AM pode dizer se poderá ser! O local foi identificado como uma potencial oportunidade para uma ligação cota alta-cota baixa nesta zona da cidade. Assim, a CMP fará os arruamentos. Essa ligação pelos elementos consultados parece não estar clarificada.Arriscando-me a resumir uma história complexa, diria assim: Nuno Cardoso aprovou uma versão; Ricardo Figueiredo negociou outra; Paulo Morais indeferiu e mandou arquivar o processo; a requerente impugnou-o judicialmente; Lino Ferreira reabriu o processo, temendo uma decisão judicial desfavorável. E é agora a AM que vai consagrar tudo isto através da aprovação de uma desafectação de duas vielas? Mal vai a nossa democracia participativa...A encosta da Quinta da China faz parte de uma unidade paisagística da cidade, sobre o rio, de grande valia e sensibilidade visual, que se estende para nascente e para a margem de Gaia.A Quinta da China foi morada de Aurélia e Sofia de Sousa. Ilídio de Araújo referiu-se a ela estabelecendo um paralelo com a obra-prima das vilas de vilegiatura do barroco italiano: Isola Bella. Seguindo a boa tradição da arte de bem construir na paisagem das nossas quintas de recreio, a Quinta da China encontra-se armada em socalcos suportados por muros de pedra. A casa pousa numa localização soberba sobre o Douro. Do outro lado do rio, várias outras quintas de recreio contracenam, por sua vez, com as do Freixo e Vilar de Allen. Ou seja, falamos de um espaço da cidade de eleição, uma encosta a sul, sobranceira ao Douro, com a sua carga histórica. É tudo menos um lugar banal ou vulgar, pese a sua muita desqualificação actual.O que fazer com espaços desta natureza que são privados? A cidade não pode prescindir dos privados como agentes privilegiados da sua dinamização. Deve esclarecê-los sobre as questões mais diversas, desde alertá-los para os níveis de ruído como um caminho-de-ferro ao lado de uma zona residencial ou sobre os procedimentos e as virtudes da promoção de debates públicos sobre grandes projectos de investimento imobiliário. Deve apoiá-los no prosseguimento de soluções de qualidade. Deve oferecer-lhes oportunidades e ir ao seu encontro, envolvendo-os na participação do fazer cidade.O nosso quadro legal prevê que loteamentos com área superior a 4ha sejam sujeitos a discussão pública. Este loteamento, segundo os documentos, tem 39.772m2. Mas será que o número de metros quadrados é o mais importante? Em situações vulgares, estará bem, mas, em situações da natureza da presente - que é tudo menos um lugar vulgar -, temos de pensar primeiro o que é o melhor em vez de partirmos a correr para a métrica e perdermos a visão do conjunto e ouvir os cidadãos. Os espaços de cada um não são só os metros quadrados do seu terreno - são também a sua bacia visual, que é partilhada por muitos!Uma vez mais se perde uma oportunidade de bem fazer cidade. Porque não se acredita na realização de concursos de ideias? Porque não se olha a cidade a montante dos regulamentos e dos índices? Porque não se dá a primazia aos estudos de conjunto e de paisagem ao encontro dos PDM? Só depois devemos aplicar índices e regulamentos. Mas, primeiro, há que compatibilizar vias, funções, mobilidade, salvaguarda de vistas, conforto urbano, património, ruído, qualidade do ar, qualidade paisagística e arquitectónica...Está na hora de se fazer cidade recorrendo a processos mais inovadores e participativos!Veja-se como foi diferente a atitude do alcaide de Madrid perante os protestos dos cidadãos relativos ao projecto do Passeio do Prado: reabriu a discussão pública!"

Deputada Municipal pelo PS e Arquitecta paisagista. Universidade do Porto.

in Publico 29.05.2006

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